Avançar para o conteúdo principal

O Anjo da Morte


Vivo enroscada, de dia e de noite, entre o preto e o branco e, hoje, estou apática, indiferente, sem vontade de contestar a este desafio. Há, quase, um mês que venho adiando este momento. Tu és o único que sabes porquê, és o único que consegue ler a minha mente, o único que sabe a saudade que me assola, a revolta que me desgasta, o desespero que me domina.
O preto, que, para mim, simbolizava o mistério, a fantasia, a dignidade, a confiança, a sofisticação e o luxo, hoje, simboliza o terror, o pesar, a morte e o luto.
O branco, que, para mim, era o símbolo, da paz, da calma, da pureza, da limpeza, do relaxamento, da verdade, da sinceridade, da esperança e da inocência, hoje, simboliza, apenas, o frio, o teu arrefecimento, a tua destruição.
Não estava prevenida, ninguém estaria, para a tua partida, depois de um dia passado contigo, vendo-te rir, brincar, falar e andar. Eram os teus primeiros passos, trémulos, ainda, mas, tão meticulosos. Ficava horas a ver-te agir e interagir, com os brinquedos, com os animais, connosco ou, até, com a comida.
Lembras-te do sorrisinho que fazias quando saboreavas um alimento com paladar desconhecido? Aquele sorrisinho hesitante e acanhado? Não consigo esquecê-lo. Como não consigo esquecer todos os momentos em que estiveste connosco, as fotos que te tirámos, a admiração que sentíamos quando olhávamos para ti, a alegria estampada no teu rosto quando te davam um volante, as recordações que me fazias reviver.
Não consigo esquecer aquele sábado, o último. Estavas diferente, mais sereno, mais tranquilo, mais macio, com um ar celestial. Tinhas um ar celestial, um ar tão celestial que me aterrou.
Domingo, quando aquela campainha soou, às sete da manhã, foste tu que me vieste ao pensamento. Desci, já com o horror estampado no rosto, sabia que, lá em baixo, encontraria os teus pais desconsolados, desamparados e desprotegidos.
Tu eras o nosso menino, o menino que todos queriam saber onde e como estava. E agora? Agora nada sei de ti, apenas sei que, continuas no meu pensamento, tão vivo como há um ano atrás. Apenas sei que me fizeste feliz, que continuo a ver-te rir, correr e brincar. Apenas sei que continuo a amaldiçoar aquele anjo, vestido de branco, com um coração negro, tão negro como o carvão, como a morte que transportava, que te beijou, que te cativou, durante o sono, naquela maldita noite, tão fria que te congelou.
Sabias que este tema, preto e branco, me levaria a falar de ti, de ti que iluminaste a nossa vida, enquanto viveste, que foste a nossa luz, a nossa pomba da paz, a nossa esperança. Sabes, também, que o preto e branco nunca mais voltarão a ser os mesmos, que as nossas vidas, sem ti, nunca mais terão o vermelho da tua alegria, a vida da tua felicidade, o poder da tua tenra idade.
Brown Eyes
Elaborado para Fábrica das Letras, "Preto e Branco"

Comentários

Mulher a 1000/h disse…
Estou fria e arrepiada. O texto está lindo, mas fiquei com tanta pena, daquela que é a pior... a pena que sabe, que não tem solução. Parabéns pelo texto, mais uma vez, lamento a perda... Lamentíssimo muito! Beijinhos.
Ginger disse…
Emocionou-me muito este texto...
Lamento imenso a tua perda.
São coisas triste e cruéis que acontecem num sopro e nos fazem olhar para o mundo de uma forma mais cinzenta e amarga.

Beijo na alma*
Poetic Girl disse…
Ai Brown Eyes em cada palavra tua revi um episódio igualmente doloroso para mim... bem não sei que te diga, deixaste me sem palavras... beijo
Eu mesma... disse…
muito bonito, estou verdadeiramente emocionada.
posso ser indiscreta e perguntar-te sobre quem falas? beijinho.
Brown Eyes disse…
Sílvia, Ginger, Bela e Anne obrigada pelo vosso comentário e apoio. Esta perca ainda me dói muito. Todas elas nos fazem sofrer mas esta, com apenas 1 ano e dois meses amachucou-me. Quem espera estar hoje a brincar com uma criança e amanhã ser acordada com a notícia de que morreu durante o sono? É um choque muito forte. Esta criança tinha um quê de especial. Sabem aquelas crianças que nunca se queixam que se estão sempre a rir? Era assim. Tal como eu disse, no sábado, então, estava com um ar anormalmente celestial. Este menino era neto do meu mais que tudo, passava muitos dias comigo, ajudava-me a lembrar os meus momentos de mãe, a matar saudades desses tempos. Parecia que o tempo tinha voltado atrás quando estava com ele. Enfim, a felicidade durou pouco e quando abri os olhos ele já não estava. Estes pertencem àqueles momentos que não queremos lembrar mas que não nos saem do pensamento. Há muitos nas nossas vidas. Pior quando se amontoam. Beijinhos a todas.
Su m disse…
Brown Eyes, lamento muito.
O texto está fantástico. Eu pelo menos sinto que há certos sentimentos/emoções que só consigo transpor na escrita e que ao fazê-lo muitas vezes sinto um alivio imenso.
Espero que ao escreveres este texto te tenhas sentido assim também.
Brown Eyes disse…
Su chorar dizem que alivia, não é? Foi assim que escrevi este texto e é assim que o leio. Esse menino era para mim mais do que consigo explicar.
Obrigada pelo teu comentário e pelo teu apoio.
Beijinhos
Brown Eyes disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
Brown Eyes disse…
Esse menino está no post "Inerte pensando em ti" de 18 de Junho e no "The Idle Parent", post de 30 de Agosto.
meldevespas disse…
Pela primeira vez chego aqui e fico sem palavras. Sou mãe e não quero, não gosto, não suporto pensar no que pode ser um perder tão grande. Estamos prparados para os perder em vida, para as escolhas deles, para os caminhos bons ou maus, mas nunca uma mãe pode estar preparada para um abismo desses. Fiquei com um aperto aqui dentro depois de ler.
Um beijo grande, e a vossa saudade possa encontrar paz.
Brown Eyes disse…
Mel nós nunca aceitamos essa realidade, nunca a imaginamos a bater à nossa porta mas ela bate. Eu não aceito a morte de um animal, imagina estas. Engraçado que não tenho medo da minha morte mas, tenho tanto medo que morra alguém à minha volta. Mel nós nunca estamos preparadas para perder os filhos, nem quando eles resolvem ter vida própria, nem para as más escolhas que eles possam fazer. Tu lutas até ao fim pela vida do teu filho e nunca aceitas um caminho errado, conformaste, não tens outro remédio mas, o sofrimento nunca termina, o coração sangra a cada minuto. As percas acabam por se amontoarem, umas em cima das outras e quando tu pensas que algo te vai aliviar de uma cai-te outra em cima. Enfim...esta é a vida real e crua.
Beijinhos minha querida
Ceres disse…
Brown Eyes,
Lamento imenso :(

Não há palavras suficientes para confortar um coração que sofre tal perda. Mas a capacidade de produzir tal texto aponta na direcção de um coração que se vai remendando...

Um grande beijinho :)
Brown Eyes disse…
Ceres temos que aprender a remendar-nos à medida que a vida nos vai esburacando. Às vezes parece que não há remendos que cheguem. Beijinhos e obrigada.
mz disse…
Tudo o que dói nós adiamos...

Escrever as nossas dores e partilhá-las ajuda a libertar o grito que ainda está apertado dentro de nós.

Que posso dizer eu?
Sou uma desconhecida...
posso dizer que em casa dos meus pais tbm aconteceu o mesmo...

Recordamos a ternura e os melhores momentos com serenidade...


Junto-me a si e deixo-lhe um abraço bem apertado!
Melga disse…
Sem mais comentários que a saudade a preto e branco na dor da perca...
e todos nós acabamos por perder alguem!

Bjo*
Unknown disse…
A ausência definitiva daqueles que amamos marca-nos para sempre presença nas nossas vidas.
Quando quem morre inverte a ordem natural da vida, ainda mais nos marca.


Obrigada pela visita.
Si disse…
A lei da vida é injusta.
Muito.
Lala disse…
Estava ansiosa por ver a tua participação na "Fábrica" e... deparei-me com este texto. Deparei-me com este expulsar de sentimentos com sentido. Deparei-me com a força do amor eterno. Deparei-me com a inocência de uma vida. Deparei-me com a dor de uma perda. Deparei-me com a voz da saudade. Deparei-me com um coração de cores trocadas. Sou mãe, e não consigo imaginar como seria se algo acontecesse à minha "C". Mas uma coisa eu confirmei neste teu relato: Não há nada nem ninguém que nos pertença. O ser humano apega-se, agarra-se, apodera-se. Perde e depois sofre. É legítimo quando se ama.
Está muito bonito o teu texto. Parabéns pelas tuas letras. Parabéns pela tua coragem. Parabéns.

1 beijinho.
Mulher a 1000/h disse…
Minha querida amiga... não sei como é que um coração aguenta uma perda destas e ainda pior, não sei como coisas destas podem acontecer! Acho que este é só mais um daqueles mistérios horríveis e assustadores da vida, a quem chama um FDP de um "acaso". Que horror pensar que uma desgraça destas nos pode entrar berço a dentro... nem é bom pensar! :(
Brown Eyes disse…
MZ obrigada pelas tuas palavrinhas. Se em tua casa aconteceu o mesmo podes imaginar como se fica. Mas o sofrimento faz parte da vida, não é?
Beijinhos

Olhos Dourados obrigada mais uma vez.
Beijinhos

Melga infelizmente perder acaba por passar por todos, mais tarde ou mais cedo. Quem me dera que isso não fosse verdade.
Beijinhos e obrigada

GI pois é, estamos à espera que morram os mais velhos? Há excepções, excepções marcantes.

SI se é. Um beijinho e obrigada.

Lala acabamos por ter medo de nos agarrar às pessoas não é? Perder alguém assim é demasiado doloroso. Nunca sara a ferida. Impressionante como até um lugar nos faz lembrar a pessoa. Há que aproveitar bem as pessoas enquanto elas vivem. Não sei para quê as guerras, ódios, discussões, acabamos todos no mesmo sítio, teremos todos saudades de alguém que parte, porque não aproveitá-los enquanto cá estão? Será que vale a pena tanta luta? Eu acho que não. Por tudo isto cada vez dou mais valor às pessoas.
Beijinhos e obrigada

Sílvia melhor nem pensar. Há quem diga que temer algo faz com que aconteça. Eu sempre temi esta morte. Dormi com o meu filho, sempre que possível, se eu não podia dormia alguém com ele, até aos sete anos, por este motivo. Antigamente pensava-se que morriam sufocados com o vómito não era? Pois. Hoje já descobriram mais acerca desta morte mas, ainda, é pouco. Há uma paragem do coração, que segundo estudos é hereditária. Que descubram logo o motivo porque, ...é horrível. Um beijinho grande Sílvia e obrigada.
Um texto belo, apesar de tão dorido. Com muita força nas palavras.
Grata pela visita
Bj
By Me disse…
PERDER UM FILHO É DE PETRIFICAR E CONGELAR POR DENTRO. É NUNCA MAIS SER O MESMO...É UMA DOR DESMEDIDA E INFINITA...PENSO QUE SÓ QUEM A VIVE SABE VERDADEIRAMENTE AS CICARIZES QUE DEIXA...O TEU TEXTO ILUSTRA BEM O SENTIMENTO DE MÁGOA E PERDA...

LAMENTO QUE O ANJO BRANCO TENHA VINDO TERNAMENTE ROUBAR-TE O QUE TÃO CEDO TINHA SIDO PROMETIDO


OBRIGADA PELOS COMENTÁRIOS
By Me disse…
BEIJINHOS E BOM FIM DE SEMANA
Paulo disse…
Há uma frase que eu relembro sempre nestas alturas "nenhum pai deveria ter de enterrar o seu filho". Deve ser a maior dor que alguém pode suportar (a perda de um filho). Muito sinceramente, eu não sei se aguentaria...
Sinto muito pela tua perda. Fio muito triste e cruel.
Belo texto, uma vez mais.
Preto e Branco.
Brown Eyes disse…
Ana Mar obrigada pela tua visita e por teres deixado aqui a tua opinião.
Beijinhos e Bom fim-de-semana

Pedrasnuas só mesmo quem vive. A vida nunca mais é a mesma. Se não temos muita confiança nela, imagina como se fica depois, depois de se ver partir um menino na idade mais linda deles: quando começam a falar e a andar. Perder um filho cria um vazio, uma insatisfação, uma incompreensão atroz, medonha.
Obrigada pela visita e pelo comentário.
Beijinhos

Paulo pois não devia ser assim. O normal é o contrário mas…a vida prega-nos partidas. Perder um filho é como continuares vivo sem viveres. E pode-se perder um filho de muitas maneiras, nem sempre é só a morte que nos o leva. Paulo nós quando temos um filho não estamos preparados para todos os percalços que possam aparecer. Ter um filho já é uma preocupação constante perde-lo então…
Beijinhos e obrigado amigão.
João Roque disse…
Venho agradecer a tua simpática visita e ao mesmo tempo mostrar-me solidário contigo na tua dor; este ano que agora finda foi também para mim muito doloroso pois perdi, entre outros, uma irmã e dois amigos muito queridos...
Noutra situação (estou de férias) teria desenvolvido possivelmente esse tema.
Beijinho.
Brown Eyes disse…
pinguim obrigada pela tua visita e pelo teu apoio. Não há nada mais doloroso que se perder alguém. Andamos muito tempo envoltos em dúvida. A dor é tanta que chegamos a duvidar da realidade. pinguim que o ano que vem seja melhor para todos aqueles que perderam alguém ou algo muito valioso.
Beijinho e boas férias. Aproveita
free_soul disse…
Vim ao teu canto depois de te ver visitar o meu...e dou com este texto que arrepia, faz correr lagrimas pela cara abaixo...um beijo e um abraço que não fará quase nada mas pelo menos dá um pouco de calor...
Está belo e contrastante como o preto e branco...
um beijo
Brown Eyes disse…
Obrigada free_soul pelo apoio e pela visita. A Fábrica proporcionou-nos a oportunidade de conhecer novos mundos, novas maneiras de pensar. Foi sem dúvida esse, além do desafio, o que mais me encantou no lançamento desta super ideia. Por isso, sempre que possa, passarei a ler o teu blog.
Gemini disse…
Olá Brown Eyes!

Leio em cada letra uma lágrima. Em cada lágrima uma dor. E são lágrimas que aqui te deixo. Lágrimas brancas. Que uma dor, solidariamente preta, não permite conter.

O teu texto é a homenagem que nos faz amar, também, essa criança. E elogia-se, por si só, na obra que é!

Um beijinho.
Brown Eyes disse…
Gemini obrigada pelo teu apoio e pela maneira como o fizeste.
Beijinhos
MC disse…
Que triste!

:(

Como se supera uma coisa destas?

*
Brown Eyes disse…
Miguel não se supera. Cada recanto, cada situação nos faz lembrar. É uma dor eterna.
Obrigada. Beijinhos

Mensagens populares deste blogue

A droga da fama

Ao longo da minha vida fui tirando conclusões que vou comparando com os acontecimentos do dia a dia. Muito cedo descobri que ser famoso, ser conhecido, ou até mesmo ter a infelicidade de dar nas vistas, mesmo sem nada fazer para e por isso, era prejudicial, despertava inveja e esta, por sua vez, tecia as mais incríveis teias. Todos, algum dia, foram vítimas de um boato. Todos descobrimos a dificuldade em o desfazer, em detectar a sua origem mas, todos, sabemos qual o seu objectivo: ceifar alguém. Porque surge ? Alguém está com medo, medo de que alguém, que considera superior, se o visse igual ou inferior não se sentiria barricado, lhe possa, de alguma maneira, fazer sombra. Como a frontalidade é apanágio apenas de alguns e porque, a maior parte das vezes, tudo não passa de imaginação, não se podendo interpelar ninguém com base nela, não havendo indícios de nada apenas inveja parte-se, de imediato, para o boato. Assim, tendo como culpado ninguém, porque é sempre alguém que ouviu

Carnaval de Vermes

Vermes, quem são? Aqueles que jogam sujo, aqueles que não medem meios para chegarem a um fim, aqueles que prejudicam deliberadamente, aqueles a quem eu afogaria à nascença e sou contra à justiça feita pelas próprias mãos mas, afogava-os, com todo o prazer.  Não merecem viver,  muito menos relacionarem-se com gente. Vocês acham que sou condescendente só porque o verme é vizinho, conhecido, amigo ou familiar? Não. É verme e  como tal não lhe permito sequer que respire o mesmo ar que eu.  Se todos pensam assim? Não. Há quem pense que temos que aceitar certo tipo de vermes, que há vermes especiais,  os   do mesmo sangue, porque fica bem haver harmonia no lar ou até porque … sei lá porquê, não interessa.   Não sei? Não será porque têm medo de serem avaliados negativamente, pela sociedade, se houver um verme na família, se tomarem uma decisão radical para com esse verme? Se for filho têm medo que o seu papel como progenitores seja posto em causa, que isso demonstre que falharam, que  

Surpreendida com rosas

Um dia, há uns anos largos, anos cinzentos, daqueles em que tudo se encrespa, entra pelo meu gabinete uma florista, que eu conhecia de vista, com um ramo enorme de rosas vermelhas e uma caixa com um laçarote dourado. Ela: Mary Brown? São para si. Eu: Sim, mas,… deve, deve haver aí um engano. Não faço anos hoje, nem conheço ninguém capaz de me fazer tal surpresa. Ela: Não há não. Ligaram-me, deram-me o seu nome, local de trabalho, pediram-me que lhe trouxesse este ramos de flores, que lhe comprasse esta prenda e que não dissesse quem lhe fazia esta surpresa. Aliás, acrescentaram, ainda, que a Mary nem o conhece mas, ele conhece-a a si. Eu: O quê? Está a brincar comigo, não? Não, não posso aceitar. Fiquei tão surpreendida que nem sabia como agir, aliás, eu estava a gaguejar e, acreditem, não sou gaga. Ela: Como? Eu: Não posso aceitar. Não gosto muito de ser presenteada, prefiro presentear, muito menos por alguém que não conheço. Imagine!  Era só o que me faltava. Obrigada mas não